Era após era, geração após geração, somos a espécie de procuradores que busca incessantemente a solução para o problema do sofrimento humano. Gladiadores destemidos na luta contra o mal-estar. Idealistas convictos que não desanimam com as derrotas passadas. E depois, descobrimos a prática baseada na evidência e a esperança, que nunca morreu, de encontrar a resposta para a pergunta, que vale bem mais do que um milhão de euros, fica num estado que nem os mais bem equipados cuidados intensivos conseguem reavivar.
Ideais que não se fazem práticas éticas de nada nos valem na busca da felicidade, e esta é tão picuinha que só se deixa descobrir à medida que os ideais vão sendo vividos. A felicidade pode ou não ser acompanhada pela ausência de sofrimento. Sim, é tudo tão complexo assim! Sem dúvida que a ausência de sofrimento é garantia da tão ansiada felicidade.
Uns anseiam-na numa outra vida, outros buscam-na na acumulação de bens, outros ainda no conhecimento, outros nas práticas diárias de simplicidade e preservação da saúde.
Há cada vez mais nichos de pessoas a dedicarem-se a viver de acordo com princípios éticos que respeitem não apenas os outros seres humanos, mas todos os seres do planeta. Pois é, novamente a ecologia. E resulta de quê esta fixação ecológica?
Eu acredito que resulta de um conhecimento profundo de como funciona o mundo, das redes de interdependências que fazem de cada pessoa única e insubstituível, de cada ser não humano único e insubstituível.
Se há algo que a pandemia fez à sociedade, para além do óbvio que não carece de nomeação, foi por em evidência pessoas essenciais para o funcionamento da sociedade que a própria sociedade não valoriza como pessoas visíveis. Temos um conjunto de profissionais invisíveis que fazem o trabalho que poucos escolheriam fazer, fazem o trabalho que lhes calhou na rifa da vida, que aparece feito e que só quando há problemas é que nos lembramos que alguém o fez. Lembramos-nos por alguns momentos, muito breves, pois estamos em geral demasiado ocupados com coisas de suprema importância, como coscuvilhar nas redes sociais, por isso só por uns instantes dignamos-nos constatar que essas pessoas invisíveis, que fazem trabalhos essenciais que damos como adquiridos, afinal não são robôs.
Poucos, muito poucos, se lembram que essas pessoas também não são escravas da sociedade. Apesar de mal pagas e ignoradas na base de uma pirâmide social mal pensada, os invisíveis são seres humanos, com histórias de medos e vitórias, anseios e sonhos, famílias e amores, paixões futebolísticas e fanatismos ideológicos, tal como a grande maioria dos portugueses espalhados pelas diferentes camadas da pirâmide social.
Se pensarmos, em termos globais encontramos os invisíveis nos habitantes de países ditos de terceiro mundo. E a classificação é clara, o terceiro mundo, o lugar menos relevante do mundo.
De facto, a classificação é clara, mas será verdadeira? Injusta é de certeza, penso que quanto a isso não haverá divergência de opiniões.
Esquecemos o que não nos dá jeito lembrar para continuar a manter um nível de vida que, apesar de a muitos não trazer a felicidade, é confortável e conhecido. E quando circunstâncias da vida que não estão sob o nosso controlo, como uma pandemia, nos trocam as voltas ai que del rei que não é justo e que não merecíamos. Claro. Mas viver na miséria não apenas uns anos mas uma vida inteira é justo, certo? Pessoas que trabalham e trabalham e continuam na pobreza porque os salários são tão baixos que não lhes permitem suprir necessidades básicas, isso é normal. Não é bom, mas é normal. Foi a má sorte, talvez.
Não caras leitoras. Não caros leitores. Não é má sorte. É a consequência de séculos de más escolhas por parte de uma fração da humanidade que se julga no direito de negligenciar os seus congéneres humanos. É consequência de décadas de consumismo desenfreado que mata plantas, animais e seres humanos dos quais todos têm pena quando deles são dadas notícias, mas que “ninguém” se lembra de considerar quando vai às compras.
O mundo, e quando digo o mundo saliento a primeira importância que dou à vida de todos os seres humanos que nele habitam, está a pagar a conta das más escolhas de uma grande parte da humanidade.
Encontramos-nos numa situação em que a ausência de escolhas éticas corrompe a sociedade a nível local, poluí e aumenta desigualdades sociais a nível global, ameaça destruir não apenas o aclamado “modo de vida” que muitos se queixam ter perdido, mas qualquer possibilidade de vida sem sofrimento extremo.
As catástrofes naturais extremas, cada vez mais frequentes, são consequência das escolhas que fazemos, e ainda que não as possamos travar sozinhos, é indispensável que cada um faça a sua parte. É essa a ironia da situação: pode não se preocupar com os animais e com as árvores queimadas, com a agricultura ou com a desflorestação, mas se não fizer nada em relação a isso vai pagar a conta com ou sem dinheiro. Por isso pouco importa que não se importe. Esta conta é paga com o sofrimento de todos.
E é por isso que a ética é uma das tendências globais do desenvolvimento humano. A ética permite-nos viver uma vida melhor por nos ajudar a lidar com o sofrimento e a evitá-lo (uma atitude muito pouco tradicional em Portugal, onde tudo se remenda e pouco se previne – exceção feita ao programa de vacinação).
Viver uma vida ética impede-nos de negar a realidade, faz-nos procuradores da verdade nos vários domínios da vida. O que nos leva a resolver o problema de desconexão com a realidade em que muitas pessoas vivem – isso apesar das super-rápidas conexões de internet.
A comida vem em embalagens ou aparece nas mesas dos restaurantes. Os produtos básicos compram-se e ninguém sabe de onde vêm ou o mal que fazem, ou o quanto vai custar livrar-se de tantas embalagens. Os serviços públicos e privados compram-se, e muitas vezes as pessoas por detrás desses serviços são desumanizadas ou ignoradas (que neste contexto, vale o mesmo). Tudo se compra. As pessoas são utensílios que realizam serviços. Utilidades que nos servem quando surge uma necessidade. Há uma clara falha de empatia social.
Da falta de empatia resulta um grande desconhecimento da realidade.
O que faz com que muitas pessoas tomem decisões sem saberem o que estão a fazer. Isso é tão válido para decisores políticos e empresários, que vivem alienados num mundo de dados por vezes viciados, como para os cidadãos que não tendo responsabilidades políticas têm responsabilização social nas escolhas que fazem, e na forma como vivem e tratam os outros.
Para conhecermos a realidade, na busca incessante pela verdade, temos obrigatoriamente que nos interessar pelos outros. Pelo menos eu não conheço outra forma de o fazer.
Interessar-se pela triste senhora desengraçada com quem nos cruzamos ao passar de carro, a quem um simples bom dia à distância revelou um sorriso e uma alegria singela no despertar do desconfinamento. Pela criança que faz birra no café para atrair a atenção de alguém. Pelas pessoas que com quem nos cruzamos e de quem nem sempre gostamos. Por todas as pessoas que não conhecemos e sabemos que não podemos fazer sorrir, mas que são o nosso próximo, pois vivemos numa aldeia global. Quando não atendemos à empatia que faz de nós melhores seres humanos arriscamos-nos a esquecer ou negar a evidência de que dependemos uns dos outros.
A nossa interdependência é sanitária, económica, social, educacional, tecnológica. Todas as áreas das nossas vidas ligam-se como fios de uma invisível teia. Sem a ética a orientar os nossos comportamentos criamos o caos. E não é num mundo quase caótico que vivemos?
Viva integralmente
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