Uma pandemia é como um semáforo acende primeiro a luz amarela, avisando-nos para termos cuidado. Mais tarde o amarelo-alaranjado deixa de piscar e a luz vermelha acende-se e não para de brilhar.
Nas pandemias quanto mais tempo ficar ligado o semáforo no vermelho, mais pessoas morrem, mais pessoas ficam com sequelas da doença, mais dinheiro tem de ser injetado nos cuidados de saúde, nos apoios sociais, nos incentivos à economia. Nas pandemias quanto mais tempo ficar ligado o semáforo no vermelho, mais todos nós perdemos.
Uma das coisas fantásticas dos paradoxos é que nos leva a ver sempre mais, mais longe do que o evidente. Nos paradoxos andamos sempre à procura do outro lado da medalha, aquele que aparentemente não existe, por não estar visível no imediato.
Com já referi num artigo anterior, eu gosto imenso de paradoxos. Quando a normalidade é banal, um paradoxo leva-me sempre para o mundo do extraordinário.
Que paradoxos podemos encontrar nos efeitos da pandemia?
Vamos começar pelos mais evidentes. Se todos perdemos algo, com as vidas aparentemente interrompidas, então também todos temos a possibilidade de ganhar algo com isso.
A derradeira questão é o quê: o que ganhamos todos?
A palavra “todos” é uma abstração, todos não é um número, logo não é algo de concreto. Usamos a palavra todos, quando queremos aludir a um grande número de pessoas. Neste caso eu uso a palavra todos para me referir à humanidade como um todo.
Vou reformular a pergunta: o que ganhou a humanidade com a pandemia covid-19?
Se no imediato podemos apontar as imensas vidas perdidas e o sofrimento desmesurável dos que sobreviveram à doença, os empregos perdidos e as carências económicas, a verdade é que tudo isso já existia em larga escala, ainda que não fosse tão visível, ainda que vivêssemos na ilusão de que tínhamos a saúde sobre controlo, de que tínhamos a economia sobre controlo.
A primeira verdade a evidenciar é que ninguém tem nada sobre controlo algum.
As cadeias de fornecimento de alimentos não são inteligentes, não estão otimizadas para que a humanidade ganhe saúde, nem para que todos tenham acesso a produtos básicos saudáveis. A produção e distribuição de alimentos a nível mundial está organizada para garantir lucros a alguns, principalmente às grandes empresas de distribuição de alimentos.
Em Portugal acontece exatamente o mesmo, não somos a exceção à regra. Como as nossas cidades são pequenas, em relação às grandes cidades mundiais, o acesso a alimentos é facilitado pela entreajuda local, mas a verdade é que parte considerável da população deste país vive à margem, numa economia paralela, que não paga impostos, nem tem benefícios sociais em situações de crise – seja crise sanitária, económica ou outra.
A grande questão que se coloca é: porque é que estas pessoas sentem que não têm alternativa senão viver/trabalhar à margem da lei? Será uma questão cultural? Ou será uma questão mais complexa que é tantas e tantas vezes simplificada demais por quem não a compreende verdadeiramente?
Se não compreendemos não podemos dar resposta aos problemas reais. A primeira ilusão de controlo é a ilusão do conhecimento. Acharmos, como povo, que sabemos sem termos tido a oportunidade de compreender empaticamente a situação para a qual projetamos soluções irreais.
É por isso que os planos de recuperação económica falham, porque as palavras e os números escritos nos papéis não representam a verdade.
Em vez de procurarmos controlar as situações a verdadeira inteligência e sabedoria está na procura da adaptação à realidade. Esta é uma mudança radical de forma de pensar.
A segunda verdade evidente é que o excesso de mobilidade expõe-nos a riscos ambientais com custos elevados para a saúde e para a economia.
Quando todos ficamos fechados em casa, a qualidade do ar atingiu recordes. A poluição diminuiu tanto que algumas cidades mundiais conseguiram livrar-se do nevoeiro causado pelos escapes dos automóveis e das motos. As pessoas que vivem nas cidades respiraram ar de qualidade rural, como já não faziam há décadas.
Não sendo solução definitiva ter uma vasta percentagem da população fechada em casa, a verdade mais do que evidente é que a mobilidade tem de diminuir e não aumentar, principalmente nos meios urbanos.
Não basta substituir todos os motores a combustão por motores elétricos e continuar a ter estradas entupidas de carros, engarrafamentos a horas criticas, todos os dias, e um custo extraplanetário de consumo elétrico. É necessário reduzir as necessidades de mobilidade ajustando as vidas às tecnologias existentes, para manter a liberdade de mobilidade de todos.
Neste sentido a pandemia trouxe benefícios para todos, mostrando-nos caminhos que inevitavelmente iremos percorrer para redesenhar uma vida em sociedade que garanta a qualidade necessária de saúde para todos. Não apenas nos cuidados de saúde prestados aos doentes, mas sobretudo na prevenção ativa de doenças, no cultivo da saúde, com soluções tecnológicas inteligentes para problemas crónicos de uma sociedade envelhecida.
Todas as sociedades são envelhecidas, e as que ainda não o são, para lá caminham. Negar esta evidência não é apenas uma perda de tempo, é uma perda de oportunidade de implementar soluções que privilegiem a promoção da qualidade de vida como ela existe, e não a utopia do que tínhamos no passado.
Negar a verdade colocam-nos em modo de “correr atrás do prejuízo” em vez de entrarmos em modo de “planificar para um presente e futuro melhor”. Quando olhamos para o que é encontramos soluções para os problemas que temos. Quando nos fixamos no que deveria ter sido de acordo com os nossos planos, ou de acordo com uma ideologia qualquer, tentamos vergar o mundo à ilusão que construímos – isto é o oposto de adaptação.
Eu acredito que a pandemia não interrompeu a vida da humanidade, que os anos pandémicos não são anos perdidos. À exceção das mortes diretamente relacionadas com o covid-19, esta situação sanitária trouxe-nos uma série de oportunidades de crescimento pessoal, de desenvolvimento humano, que não teríamos de outra forma.
A interrupção sistémica de um modo de vida, não interrompe a vida, redireciona o rumo e o sentido da vida de todos. (Lá está novamente a palavra todos… toda a humanidade, grande parte da humanidade).
Uma fração dos seres humanos que habitam o planeta são conscientes dos problemas ecológicos e económicos que como espécie enfrentamos. Esta pequena fração vive de acordo com valores éticos e procura constantemente soluções melhores para problemas reais do seu dia-a-dia. São os ecologistas, os pensadores, os que agem em função do que pensam, os que pensam em função do que são e não do que o mundo lhes impõe.
A pandemia conduz-nos para uma vida mais real, para uma forma de pensar sistémica que tem de ser obrigatoriamente analisada à luz da ética, e aquela pequena fração de gente que era vista com suspeita de ter manias esquisitas, é agora reconhecida como avant-garde.
Todos procuramos ser felizes, a derradeira questão é que ninguém é feliz se não conseguir ver a verdade, se não conseguir ver a realidade como ela é. Antes da pandemia a negação da realidade era a norma. Agora ninguém consegue negar por muito tempo a insustentabilidade daquilo a que chamávamos um modo de vida normal.
A vida não foi interrompida, foi reconduzida para um rumo com futuro.
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