Aos mal informados que ainda subsistem, eu cozinho muito bem. Não cozinho de acordo com a tradição, inovo a cada refeição. Procuro a saúde nos alimentos e trato-os bem, realçando os seus sabores naturais e combinando-os em sinergias perfeitas.
Nesta quadra festiva, embora eu não siga a tradição, tinha abóbora e decidi fazer uma das receitas tradicionais: bilharacos. E foi um desastre!
Como é comum em mim, a receita serviu de mera orientação, eu acrescentei vários ingredientes para a tornar saudável. Substituí o fermento químico por fermento natural mas mal calculei a quantidade e o sabor ficou ...hum... mau. À abóbora não dei o tratamento tradicional, por desconhecimento, e o excesso de água tornou a massa demasiado líquida.
Do sabor à textura, à fritura, nada correu bem. E para os que pensam que só acontece aos outros, não se iludam, acontece-nos a todos, bons e nem tão bons cozinheiros. De quando em vez lá vem uma desgraça, mas na cozinha, pelo menos, as desgraças tendem a vir sós.
Este desastre culinário fez-me pensar no porquê das coisas. Por vezes andamos tão imersos nas tradições e no que é normal que nem refletimos sobre o que estamos a fazer.
Eu não sou uma pessoa tradicional, nem na cozinha, nem na quadra natalícia que abomino pela insanidade que carateriza as escolhas das pessoas em geral e, ainda assim, lá fui eu seguir a tradição. Em vez do leite creme feito com leite de aveia, do arroz doce de alfazema com leite de amêndoa, de qualquer uma das minhas sobremesas gourmet, dei comigo a tentar uma receita tradicional sem primeiro compreender de onde vinha essa tradição e se quereria eu mantê-la ou não.
Uma receita que leva abóbora, farinha, açúcar e ovos, é frita e vai juntar-se a umas outras quantas sobremesas fritas, deve ou não fazer parte do meu receitário pessoal?
E quando coloquei esta pergunta a mim própria a resposta foi óbvia: NÃO! Nem pensar!
Nesse caso para que quero eu saber fazer estas coisas?
E na verdade descobri que não queria. Assim, como não faço outros fritos tradicionais, também este não é do interesse da minha saúde que seja feito.
Posso inovar a receita e torná-la saudável, e sem dúvida que farei isso - por uma questão de orgulho e brio pessoal, mais do que por qualquer outra razão. Mas não manterei a tradição.
Porque seguimos tradições que nos deixam doentes? Mal dispostos, enjoados, com o sistema digestivo congestionado ao ponto de nos roubar parte da clareza mental?
[A letargia que carateriza o enfartamento pós-festas natalícias não é algo que eu queira alcançar. Então, para que vou tentar reproduzir tradições culinárias com as quais nem sequer me identifico? A resposta surgiu à velocidade da luz na minha mente, “Não vou. Não volto a fazer isto”.]
A insanidade por detrás das tradições natalícias
As escolhas e necessidades das pessoas, ou melhor das famílias, nesta altura do ano, são por norma impingidas por tradições de origem desconhecida e memórias de infância que tentam reproduzir.
Considere tudo o que fez sem pensar porquê.
É o que as pessoas fazem nesta altura do ano. Fazem escolhas para responder a necessidades fictícias. E fazem-no sem pensar. Sem pensar nelas próprias (na sua saúde), nas consequências das suas escolhas para o planeta. Fazem o que os outros esperam que seja feito, o que outros fizeram no passado, e associam todas estas coisas malfeitas e pouco saudáveis a um estado de alegria, a uma suposta moralidade que se sobrepõe a uma vida vivida de forma equilibrada, uma moralidade que se sobrepõe à ausência de desperdícios, que se sobrepõe à saúde individual e coletiva (visto que estamos em tempos pandémicos), uma suposta moralidade que vai em sentido contrário a tudo o que eu defendo e acredito. Logo, a moralidade dita natalícia, superficial, consumista e não ecologista, doentia e geradora de, ainda mais, desigualdades sociais não é e não voltará a ser a minha guia moral.
Fui à procura das origens destes comportamentos insanos
Não estou certa de ter encontrado todas as origens, mas o panorama geral é mais ou menos este:
Durante séculos, a população portuguesa era maioritariamente pobre (agora também, mas com melhor qualidade de vida), vivia da agricultura de sobrevivência e as trocas diretas eram superiores aos pagamentos em dinheiro. Os pobres trabalhavam para os agricultores ricos, recebiam pouco e quem não tivesse a sua horta passava fome. Os dias e as refeições eram, em geral, iguais uns aos outros. Trabalhava-se de sol a sol, comia-se o que a terra dava. Pouca era a carne; eram o pão e as azeitonas, as sopas fortes de feijão/grão e legumes que impediam os estômagos de rosnar. A religião era imposta pelos nobres e pela monarquia, as festas religiosas eram o pretexto para que os ricos distribuíssem alguns alimentos pelos pobres. Os pobres para poderem celebrar as festividades, com o que tinham inventaram receitas que se tornaram tradição por os pobres serem a maioria da população. Ingredientes humildes, de fácil acesso, combinados com uns ovos e, de inicio sem açúcar, eram fritos em diversos formatos. Literalmente, as pessoas enchiam a barriga com estas sobremesas. Sentiam-se bem, por serem dias diferentes, de descanso e festa, em que se comia mais do que nos restantes dias do ano. Assim, pelo natal e pela páscoa temos esta tendência para comer como se não voltássemos a ver mais nenhuma primavera.
E desta humildade de ingredientes, do isolamento da população, nasceram imensas receitas que quando as comunicações se tornaram mais rápidas, e a informação começou a circular por todo o país, se espalharam por famílias que se cruzaram nos caminhos da vida. No final do século XX, quando o nível económico das famílias aumentou consideravelmente, todos queriam comportar-se como os ricos e ter todas as tradições juntas à mesa. O desperdício, os excessos pouco saudáveis, não eram a sua preocupação. E com isso criam nova tradição. É suposto ter mesas fartas, cheias de fritos e doces conventuais, juntam-se vários agregados familiares, porque agora as famílias são menores e as casas maiores, e festeja-se assim um nascimento em pobreza.
Se isto não é uma contradição, acho que a definição da palavras deve ser alterada no dicionário.
O que as pessoas dizem e escolhem e a verdade dos factos são muitas vezes coisas distintas.
A festa de fim de ano que celebramos como natal tem origens muito mais antigas do que o cristianismo. Logo nunca poderia ser a celebração do nascimento de cristo, que nasceu em meados da primavera e não no inverno, como comprovam os historiadores, sem qualquer dificuldade.
Quando a religião cristã colonizou a europa com os seus ideais teve necessidade de adaptar os seus rituais aos já existentes nas tradições pagãs. O natal foi a sua adaptação mais bem sucedida. A festa de inverno já existia e os primeiros clérigos deram-lhe um significado cristão. Associaram-na ao nascimento de Jesus. Et voilá... com a evolução do estilo de vida das populações o natal é o cúmulo de consumismo que temos nos dias de hoje. A verdadeira festa dos excessos da classe média e alta, e das angustias aumentadas dos mais pobres que se sentem impotentes quando não podem comprar presentes aos filhos e encher a mesas de porcarias que só lhes roubam a saúde.
A festa da família
Muitos poderão fazer valer o argumento da família e do convívio para justificar insanidades e excessos. A verdade é que as famílias têm 365 dias por ano para conviverem, e reservam para dois ou três dias no ano a totalidade desse convívio. Será isto família?
Quando as famílias se entendem, as celebrações fazem-nos sentir bem e são um motivo de alegria. Reservar para dois ou três dias por ano o nosso bem sentir e a alegria de estar em família é um péssimo negócio.
Para que preciso eu de uma data para me sentir bem, esperançada e feliz se me sinto assim todos os dias? O objetivo é ser feliz uns quantos dias por ano ou todos os dias do ano?
Para que preciso eu de presentes e quadras festivas que destroem, potencialmente, o equilíbrio que eu criei ao longo de todo o ano?
Não preciso e não quero.
E pela primeira vez, há um cliché que me serve na perfeição: na minha vida “a tradição já não é o que era”. Eu mudei e a minha transformação traz consigo novas tradições.
Viva Integralmente
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