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Foto do escritorAndreia Ferreira Campos

Contradição


20 de janeiro de 2021


Chove e venta noite e dia e, contudo, hoje é um bom dia.


Dia das fogaceiras, a tradicional festa do concelho da Feira. Feriado municipal.


Às minhas memórias da infância vou buscar os dias passados na padaria da minha tia a ver trabalhar, ralhar (no aperto da procura havia sempre qualquer coisa que não corria bem…), e por fim lanchar.


Posso dizer que conheço bem todo o processo de produção da fogaça e de outras lambarices também. Conheço desde pequenita, quando via a minha família a trabalhar e me deixavam ligar a máquina, só para eu poder fazer parte desses mesmos processos. E isto é inclusão. Eu atrapalhava, talvez, mas também fazia alguma coisa, mais não fosse ligar as máquinas.

Mais tarde, bem mais tarde, quando comecei a fazer o meu próprio pão, amassar não foi um problema. Estava farta de saber como se fazia, de tantas vezes ter visto amassar fogaça e bolo-rei, a dificuldade foi com a fermentação natural, que tive de ir experimentando até encontrar um processo infalível.



Para mim, e para a minha família, 20 de janeiro é sempre um dia feliz. Em que se vê toda a gente, pois todos passam por Rio Meão para ir buscar a fogaça, e está sempre toda a gente bem-disposta. Não há o sufoco das preparações festivas que dão imenso trabalho a uns e das quais beneficiam sempre os mesmos, como acontece pelas festas de natal e fim de ano. O feriado das fogaceiras é uma festa leve, não carece de preparação e todos disfrutam. Mesmo quem trabalhou toda a noite para pôr a fogaça nas mesas de muitas outras casas.


O ponto alto da festa, não é a procissão ou qualquer celebração religiosa. O ponto alto da festa é o lanche, que rouba o apetite ao jantar. Fogaça, manteiga, queijo, presunto, tremoços, azeitonas, vinho tinto. E muita, muita boa disposição. Uma receita simples de celebração e inclusão.

As celebrações são sensoriais.

Desta guardamos os cheiros a fogaça e manteiga derretida, o seu toque quente, o som da rolha a saltar da garrafa e dos risos que nos acompanham. Há quem prefira um chá ao lanche, para essas pessoas posso sugerir o chá de erva-príncipe, limão e/ou gengibre, os sabores cítricos acompanham bem a fogaça, que apesar de doce, não é demasiado doce.


As tradições mudam, mesmo as mais simples, porque a vida muda de rumo as vezes que lhe dá na gana e sem nos pedir permissão.

Anos antes da pandemia, os lanches das fogaceiras perderam terreno perante as exigências da vida.


Nos dias de hoje, elimino o presunto, por convicção (mas com alguma saudade, admito), o queijo também sai, por ter tendência a acumular-se nas minhas pernas, fica a manteiga, agora vegetal, a minha mega especial geleia de maçã e especiarias e um extraordinário cálice de vinho do Porto. Simples, mais fatias do que o bom senso recomenda, e por isso passo diretamente para o treino de fitness. Tal, como noutras fogaceiras, também não tenho apetite para jantar, estranho…

Comecei este artigo a referir que apesar do mau tempo, hoje é um bom dia. É um bom dia por não haver procissão. As tradições das fogaceiras estão em mutação e eu considero isso um bom sinal.


Como se sabe, ainda que muitos não queiram saber, Portugal é um país laico. O que significa que associar dias feriados a uma religião não é constitucional.


O que significa que todos os feriados religiosos, nacionais ou municipais, são anticonstitucionais.

Em tempo de eleições, o candidato ou candidata que tivesse tomates para dizer isso e fazer cumprir a constituição teria toda a minha atenção e admiração.


Tomates é palavra certa, a mais ajustada a uma realidade que todos veem mas ninguém reconhece publicamente, por não ser popular. Não quero descer o nível ou vulgarizar a conversa, esse não é de todo o meu estilo, contudo é preciso muito mais do que coragem. É necessária uma grande dose de heroísmo para gritar “mentira!”, quando toda a gente quer acreditar nessa mesma mentira. É necessária uma coragem heroica e ausência de medo de ser reconhecida como a vilã, quando dizemos às pessoas que para se fazer justiça elas vão perder privilégios que consideram direitos adquiridos.


Muitas são as tradições que têm de ser repensadas neste país, e noutros, mas é neste que vivemos por isso é deste país que falamos. Na idade média era tradição a monarquia, a escravatura, a inquisição, etc. Não me parece que alguém queira manter seja o que for dessas tradições só para preservar a história.


Preservar. Esta é mais uma palavra que nos ofusca a verdade: a história não tem de ser preservada, as memórias preservam-se mas as tradições e os rituais adaptam-se às realidades da vida moderna. Esse é o caminho das sociedades cultas e justas, contruídas por pessoas inteligentes e tolerantes.


Contestar a relação promíscua que existe entre o estado e a religião católica é um bom começo para a construção de uma sociedade mais justa.


Repensar as festas por forma a preservar memórias, mas reescrever os rituais é fundamental, porque não se deve perpetuar os erros.


Eu revejo nas fogaceiras uma festa que celebra a saúde. Que comemora o fim de uma doença que fez sofrer muita gente e ceifou vidas. Não me revejo na ideia de que deus (o todo poderoso, deus de tudo e de todos, que tem tudo e manda em tudo) exige que para que tenhamos saúde seja necessário prestar homenagem, não a deus mas a um santo. Que lógica é que isto tem? Não é precisamente contra a lógica do próprio deus, que disse para não se adorarem estátuas? (Se bem me lembro da doutrina, penso que era assim!)


Não se iludam! Como se verá, a peste de outros tempos não vai voltar pela ausência de procissão. Esse era o tempo em que o controlo das multidões era feito nas igrejas, em que o conhecimento científico era inexistente, os padres diziam o que lhes dava mais jeito e mais lhes enchia os bolsos. Ainda que não fizesse sentido nenhum. Eu não imagino como é que uma procissão pode agradar a deus. E por ser a tradição é isso mesmo que continua a ser feito.


E que tal pensarmos melhor sobre as tradições para não sermos comidos por lorpas?


. Viva Integralmente, não tradicionalmente.

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